Entrevista

          

 

Aaron Wolf é diretor da Transboundary Freshwater Dispute (Conflitos Fronteiriços sobre a Água) e professor da Universidade de Oregon - EUA.

 

 

 

"O único caso conhecido de uma verdadeira guerra por esse motivo remonta a 4.500 anos."

 

 

 

 

 

"Os casos mais graves parecem ser os do Tigre, do Eufrates e do Jordão. Os países limítrofes que padecem de seca têm meios para desviar a água de seus vizinhos, o que gera uma terrível inimizade entre eles. Entretanto, todos conseguiram fazer acordos."

 

 

 

 

 

"Freqüentemen-te temos que pensar em termos de mercado — comprar e vender água como um produto — embora na prática nunca se atue assim em nível internacional."

Primeira Página

Aaron Wolf

 

A improvável guerra pela água

 

"A água será o motivo das guerras do século XXI”. Esta sombria previsão é refutada pelo geógrafo americano Aaron Wolf. Ele analisa os incidentes sobre a água que balizaram a história, em entrevista concedida ao Correio da Unesco.

Quando fala da água, a imprensa sempre evoca o aspecto de conflitos passados e futuros causados por ela. O Senhor analisou todos os acordos e incidentes internacionais relativos à água. De quando data o último conflito entre dois Estados provocado pela água?

 

O único caso conhecido de uma verdadeira guerra por esse motivo remonta a 4.500 anos. Ocorreu entre duas cidades da Mesopotâmia a propósito do Tigre e do Eufrates, no sul do atual o Iraque. Após, a água envenenou as relações internacionais, mas também se observa freqüentemente que Estados hostis —como a Índia e Paquistão ou israelenses e palestinos— resolvem os conflitos suscitados pela água uma vez que seguem lutando encarniçadamente em outros terrenos.

Também examinei todos os incidentes entre dois Estados no último meio século nas 261 bacias fluviais existentes no mundo. De um total de 1.800 casos, dois terços tinham que ver com a cooperação, como a realização de investigações científicas conjuntas ou a assinatura de mais de 150 tratados relativos à água. Quanto aos aspectos negativos, 80% consistiram em ameaças verbais e posturas adotadas por chefes de Estado, dirigidas provavelmente a seu próprio eleitorado. Em 1979, Anuar Sadat declarava, referindo-se ao Nilo, que "a água era o único aspecto que poderia levar o Egito a entrar de novo em guerra". Ao que parece, o rei Hussein da Jordânia disse o mesmo em 1990, referindo-se ao Jordão. Entretanto, nos últimos 50 anos só se combateu pela água em 37 casos, dos quais 27 entre Israel e Síria a propósito do Jordão e do Yarmuk.


Mas há quem defenda que as tensões que provocam a crescente escassez de água impedem de estudar o passado para prever futuro.


Os casos mais graves parecem ser os do Tigre, do Eufrates e do Jordão. Os países limítrofes que padecem de seca têm meios para desviar a água de seus vizinhos, o que gera uma terrível inimizade entre eles. Entretanto, todos conseguiram fazer acordos.


Os Estados foram à guerra pelo petróleo, por que não pela água?

Estrategicamente, as guerras pela água não têm sentido. Lutando com o vizinho não se incrementam as reservas de água, a menos que a gente possa apoderar-se da bacia hidrográfica do outro e despovoá-la sem correr o risco de terríveis represálias.

Mas a água foi utilizada como arma e objetivo de guerra.


Trata-se de outro problema, que existe sempre. Durante a guerra do Golfo, Iraque destruiu quase todas as plantas de dessalinização do Kuwait e a coalizão aliada dirigiu seus ataques contra o sistema sanitário e de abastecimento de água de Bagdá. Antes da intervenção da OTAN no Kosovo, em 1999, os engenheiros sérvios fecharam o sistema de distribuição de água da Pristina. Entretanto, temos que distinguir entre a água como fonte de conflito, como recurso e como arma de guerra.


De onde vem então o rumor de uma guerra da água?


Em parte do período posterior à guerra fria, quando os exércitos ocidentais começaram a perguntar-se: agora o que fazemos? A preocupação pela "segurança meio-ambiental" nasceu naquela época. Por volta de 1992, numerosos políticos começaram a sustentar que a escassez de recursos ia conduzir a uma guerra. E, claro, quando se é consciente da importância dos ecossistemas, é tentador considerar a água como uma fonte de conflitos.


O Senhor afirma em troca que a água, por sua própria natureza, incita aos Estados à cooperarem. Que exemplos poderia citar?


Os acordos do Oslo entre israelenses e palestinos nasceram de conversações privadas que mantiveram em Zurique os responsáveis pela água da região, em 1990. Foram eles que puseram em contato seus respectivos responsáveis políticos e inspiraram o processo que conduziu aos acordos. Esse tipo de encadeamentos é freqüente, pois a água conduz necessariamente a tratar de outros aspectos. Vários Estados ribeirinhos do Nilo começaram por celebrar conversações sobre a água e agora estão elaborando um acordo que abrange, entre outros temas, a rede de estradas e a infra-estrutura elétrica.


O Senhor sustenta que o perigo maior não é a escassez de água, a não ser a intenção de um país em dominar uma via fluvial internacional. Freqüentemente surgem conflitos relacionados com projetos de construção de represas. Mas, geralmente ditos projetos requerem a participação de organismos como o Banco Mundial. Não poderiam essas organizações tomar maiores medidas para impedir que surjam problemas?

O que você sugere já se fez. Mas como a maior parte do investimento procede do setor privado, os critérios dos bancos de desenvolvimento já não se levam em conta. A Turquia, por exemplo, tem destinado recursos privados e públicos ao financiamento de um projeto muito controvertido, batizado por GAP, que contempla a construção de 22 represas e 19 centrais elétricas sobre o Tigre, o Eufrates e seus afluentes. O mesmo acontece na Índia com a represa da Narmada, e na China, com o projeto das Três Gargantas.


A bacia do Tigre e do Eufrates costuma ser considerada um barril de pólvora. O que poderia impedir que a Turquia, talvez o Estado mais capitalista da região, favoreça seus próprios interesses em prejuízo do Iraque e da Síria?


Muitos compartilham desse temor, mas é muito significativo que, quando em 1991 os países ocidentais pediram à Turquia que interrompesse o curso do Eufrates para o Iraque, o governo turco respondeu: "Podem vocês utilizar nosso espaço aéreo e nossas bases para bombardear o Iraque, mas não vamos privar esse país de água." Desde os anos setenta existe, entre a Turquia, Síria e Iraque, um acordo tácito que a primeira, embora construa as represas, segue respeitando. Mas, além da polêmica, Síria e Iraque reconhecem a utilidade das represas que regulam a vazão do rio e prolongam a temporada agrícola. Por sua parte, a Turquia quer ser vista como um vizinho leal, em primeiro lugar porque é membro da OTAN e também por considerações internas e porque tenta ingressar na União Européia. O difícil é converter um acordo tácito em explícito.

Os peritos sustentam que uma bacia fluvial deve ser administrada conjuntamente, mas a negociação de tratados multilaterais sobre a água é um autêntico quebra-cabeças. Quais lhe parecem mais eficazes, os acordos multilaterais ou os bilaterais?


Quanto maior é o número de participantes, mais difícil resulta entender-se, sobretudo se estiver em jogo a soberania de um país. Vejamos o caso do Jordão: existe um acordo entre Síria e Jordânia, outro entre a Jordânia e Israel e mais um entre Israel e os palestinos – ou seja, uma série de acordos bilaterais para uma bacia multilateral bastante bem administrada, embora os palestinos façam reivindicações provavelmente para obter direitos de água mais amplos.


Alguns economistas são partidários de se criar um mercado internacional da água para evitar conflitos. Mas nesse caso, cabe citar o enfrentamento que opõe os Estados Unidos ao Canadá, que exige a este último que venda seus recursos de água, num marco do Tratado de Livre Comércio, o que o Canadá rechaça. Tratar a água como um recurso econômico pode resolver algo?


Os economistas podem destacar e quantificar os benefícios que oferece a água, como a energia hidrelétrica. Por exemplo, Estados Unidos e Canadá assinaram um acordo em virtude do qual o primeiro dispõe de represas de controle das enchentes em território canadense. Em troca, o Canadá recebe um pagamento pelo serviço que presta. Costuma ser mais fácil e mais justo repartir esses benefícios do que a própria água. Os economistas nos recordam também a necessidade de se recuperar os custos de distribuição, de tratamento, de armazenamento da água, etc. Freqüentemente temos que pensar em termos de mercado — comprar e vender água como um produto — embora na prática nunca se atue assim em nível internacional. De minha parte, dado ao apego emocional, estético e religioso que sinto pela água, resisto em considerá-la uma simples mercadoria. (Tradução: Antônio Linus Rech - entrevista aaron wolf.htm - 06022003)

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