Aos poucos nos rendemos à constatação de que a falta de água
aumenta e que, no futuro, faltará mais. O inchaço das
metrópoles, a cultura de desperdício e a crise de
governabilidade estão convertendo estiagens naturais em
traumas. A cada ano os racionamentos atingem mais gente em
São Paulo, Rio, Recife, Maceió e Curitiba. Por isso vem aí,
inevitavelmente, a cobrança para valer da água, no "day
after" da privatização das companhias de abastecimento. O
recurso farto e barato que gastávamos alegremente será
individualizado e tarifado como nunca: por hidroelétricas,
por plantação, por indústria, por casa e por apartamento.
Vai ser como a adoção sob multa do cinto de segurança: todos
vamos nos enquadrar diante de um tarifaço.
Estamos vivendo uma mudança de cultura em relação ao uso da
água. Só que surrealista. Afinal o Brasil tem 16% de água
potável do planeta, o maior rio e maior aqüífero (o Guarani)
do mundo. No Nordeste chove duas vezes mais do que em
Israel. Chove a cântaros. Todos os especialistas sabem que
não há falta d’água no Brasil. Falta outra coisa.
Em São Paulo, por exemplo, caem cerca de 1500 milímetros por
não, dez vezes o que chove na Califórnia. A Sabesp, a maior
rede distribuidora de água do mundo, recolhe água de um
conjunto de reservatórios, dos quais os principais são
Cantareira, Alto Tietê, Guarapiranga e Cotia, para atender
17 milhões de pessoas em 39 municípios da região
metropolitana. Joga na rede, todo dia, 320 litros de água
por pessoa, bem mais do que os 274 litros do mínimo
estipulado pela ONU. Entretanto o racionamento se agrava.
Ocorre que uns 40% do que circula na rede se perde (a
companhia admite 20%), seja por furos nos canos, seja por
falta de manutenção, seja por desvios clandestinos. O
resultado é 3 milhões de pessoas com falta d’água. Na
estiagem, os jornais exibem fotos diárias da represa de
Guarapiranga esvaziando. Mas todo dia a Sabesp joga fora
duas Guarapirangas!
Em 1994 o governo federal passou a limitar (em boa hora) o
crédito das companhias que apresentam grandes índices de
perda. Isso porque, durante décadas, essas empresas e os
políticos que as geriram para alegria das empreiteiras
preferiram se endividar – ou seja, a nós – e aumentar a
quantidade de água oferecida lavando as mãos para perdas da
ordem de 50%. E tome fisiologismo, rolagem de divida e
"custo Brasil" para o futuro.
Deu no que deu. A leitura do último Diagnóstico dos Serviços
de Água e Esgotos, da Secretaria Especial de Desenvolvimento
Urbano, mostra que os Estados que mais desperdiçam no Brasil
onde as redes públicas perdem até 60% (!) da água que
distribuem são os da Região Norte. É lógico. Onde a água é
abundante, ela não vale nada. Na verdade, a recordista
absoluta é a Caema, do Maranhão, do carente Nordeste, que
detém o incrível "índice de perda de faturamento" de 70.9 %.
Dá para imaginar 71% jogados fora? O menor índice de perda,
ou seja, a mais eficiente das 27 distribuidoras de água, é a
Copasa, de Minas Gerais, que desperdiça só 28% do que trata.
Aí, Minas! Só um terço de desperdício? Maravilhoso.
Por trás desses números exorbitantes, importa reiterar que
temos água o bastante para gastar mais do que o
recomendável. Sim, mais do que a ONU aconselha, felizmente.
Recursos naturais abundantes são o fundamento do Brasil.
Perder o usufruto deles pode ser um ótimo e um péssimo
sinal. Ótimo se isso significa que batemos no limite da sua
depredação. Aí, quando a água virar um problema social para
muitos (não só para os pobres), vai-se descobrir que não
falta civilização para usa-la. Péssimo, se indicar o fim da
abundancia espaçosa e cômoda da atitude brasileira para com
a natureza, que herdamos dos portugueses. Sim, pode faltar
natureza ao Brasil, como água. Junto com essa arcádia que
desaba, vai-se parte da nossa identidade, esse fantasma
brega que os intelectuais abominam.
Já os empresários sabem bem quanto valem os recursos
naturais. Afinal, a Votorantim decolou construindo as "suas"
hidroelétricas. O pessoal do papel e da celulose sobrevive
às crises graças às reservas privadas de terra barata,
cheias de água e sol, das suas lavouras de madeira. Não
haveria "boom" na soja sem a largueza do cerrado. A
Eletrobrás ama os rios amazônicos. A Vale do Rio Doce levou
de Itabira uma montanha e ignorou o Carlos Drumond de
Andrade. Se os empresários e o Estado sabem usar a terra, o
sol, a água, as florestas e os minérios para alavancar o
capitalismo, por que você, às voltas com enchentes e
alagamentos, não pode tomar um banho de 20 minutos com
chuveiro ligado? Não estamos em Israel. O senhor aí, que
gosta de lavar o carro no domingão, abra o olho. Quem mais
usar a água deve pagar por ela.