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Defenda seu banho de chuveiro

 

Ricardo Arnt

 

Aos poucos nos rendemos à constatação de que a falta de água aumenta e que, no futuro, faltará mais. O inchaço das metrópoles, a cultura de desperdício e a crise de governabilidade estão convertendo estiagens naturais em traumas. A cada ano os racionamentos atingem mais gente em São Paulo, Rio, Recife, Maceió e Curitiba. Por isso vem aí, inevitavelmente, a cobrança para valer da água, no "day after" da privatização das companhias de abastecimento. O recurso farto e barato que gastávamos alegremente será individualizado e tarifado como nunca: por hidroelétricas, por plantação, por indústria, por casa e por apartamento. Vai ser como a adoção sob multa do cinto de segurança: todos vamos nos enquadrar diante de um tarifaço.

Estamos vivendo uma mudança de cultura em relação ao uso da água. Só que surrealista. Afinal o Brasil tem 16% de água potável do planeta, o maior rio e maior aqüífero (o Guarani) do mundo. No Nordeste chove duas vezes mais do que em Israel. Chove a cântaros. Todos os especialistas sabem que não há falta d’água no Brasil. Falta outra coisa.

Em São Paulo, por exemplo, caem cerca de 1500 milímetros por não, dez vezes o que chove na Califórnia. A Sabesp, a maior rede distribuidora de água do mundo, recolhe água de um conjunto de reservatórios, dos quais os principais são Cantareira, Alto Tietê, Guarapiranga e Cotia, para atender 17 milhões de pessoas em 39 municípios da região metropolitana. Joga na rede, todo dia, 320 litros de água por pessoa, bem mais do que os 274 litros do mínimo estipulado pela ONU. Entretanto o racionamento se agrava. Ocorre que uns 40% do que circula na rede se perde (a companhia admite 20%), seja por furos nos canos, seja por falta de manutenção, seja por desvios clandestinos. O resultado é 3 milhões de pessoas com falta d’água. Na estiagem, os jornais exibem fotos diárias da represa de Guarapiranga esvaziando. Mas todo dia a Sabesp joga fora duas Guarapirangas!

Em 1994 o governo federal passou a limitar (em boa hora) o crédito das companhias que apresentam grandes índices de perda. Isso porque, durante décadas, essas empresas e os políticos que as geriram para alegria das empreiteiras preferiram se endividar – ou seja, a nós – e aumentar a quantidade de água oferecida lavando as mãos para perdas da ordem de 50%. E tome fisiologismo, rolagem de divida e "custo Brasil" para o futuro.

Deu no que deu. A leitura do último Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, mostra que os Estados que mais desperdiçam no Brasil onde as redes públicas perdem até 60% (!) da água que distribuem são os da Região Norte. É lógico. Onde a água é abundante, ela não vale nada. Na verdade, a recordista absoluta é a Caema, do Maranhão, do carente Nordeste, que detém o incrível "índice de perda de faturamento" de 70.9 %. Dá para imaginar 71% jogados fora? O menor índice de perda, ou seja, a mais eficiente das 27 distribuidoras de água, é a Copasa, de Minas Gerais, que desperdiça só 28% do que trata. Aí, Minas! Só um terço de desperdício? Maravilhoso.

Por trás desses números exorbitantes, importa reiterar que temos água o bastante para gastar mais do que o recomendável. Sim, mais do que a ONU aconselha, felizmente. Recursos naturais abundantes são o fundamento do Brasil. Perder o usufruto deles pode ser um ótimo e um péssimo sinal. Ótimo se isso significa que batemos no limite da sua depredação. Aí, quando a água virar um problema social para muitos (não só para os pobres), vai-se descobrir que não falta civilização para usa-la. Péssimo, se indicar o fim da abundancia espaçosa e cômoda da atitude brasileira para com a natureza, que herdamos dos portugueses. Sim, pode faltar natureza ao Brasil, como água. Junto com essa arcádia que desaba, vai-se parte da nossa identidade, esse fantasma brega que os intelectuais abominam.

Já os empresários sabem bem quanto valem os recursos naturais. Afinal, a Votorantim decolou construindo as "suas" hidroelétricas. O pessoal do papel e da celulose sobrevive às crises graças às reservas privadas de terra barata, cheias de água e sol, das suas lavouras de madeira. Não haveria "boom" na soja sem a largueza do cerrado. A Eletrobrás ama os rios amazônicos. A Vale do Rio Doce levou de Itabira uma montanha e ignorou o Carlos Drumond de Andrade. Se os empresários e o Estado sabem usar a terra, o sol, a água, as florestas e os minérios para alavancar o capitalismo, por que você, às voltas com enchentes e alagamentos, não pode tomar um banho de 20 minutos com chuveiro ligado? Não estamos em Israel. O senhor aí, que gosta de lavar o carro no domingão, abra o olho. Quem mais usar a água deve pagar por ela.

 

Nota: Este artigo foi repaginado em 03/01/2020, mantendo-se a formatação original do texto.

 

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